O papel do Estado em tempos de pandemia: o combate ao vírus e à crise econômica e social .
*Valdecir Pascoal
“A peste do governo é a irresolução.” (Sermão de S. Pedro, Pe Antônio Vieira, 1644)
Os efeitos da pandemia decorrente do novo coronavírus nas contas públicas são graves e ainda imensuráveis. O quadro nos faz lembrar a grande depressão econômica dos anos trinta do Século 20. Desta feita, dois sistemas são impactados. No plano individual, o vírus ataca o sistema respiratório das pessoas. A velocidade do contágio e a ausência de vacina ou tratamento específico levam a um cenário trágico, para os inúmeros infectados, e desafiador, nos moldes de uma verdadeira “escolha de Sofia”, para o sistema de saúde do país, que poderá ter que escolher a quem salvar, como vem acontecendo na Itália e na Espanha.
Noutra vertente, a necessidade de isolamento (lockdown) de boa parte da população paralisa outro sistema vital: a economia. É um contexto que nos remete a François Quesnay, médico e economista fundador da Escola Fisiocrata francesa, que comparou a economia com o sistema circulatório humano. O inusitado duplo choque provocado pela retração simultânea na oferta e na demanda de bens e serviços implicará quedas substanciais do PIB, da arrecadação (fatos tributáveis não serão gerados), da renda, do emprego, além de causar aumento considerável da pobreza. Faltará “sangue” nesse sistema. A propósito, Quesnay foi também um dos precursores do lema-mor do liberalismo econômico: “Laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui-même” (“deixai fazer, deixai passar, que o mundo caminha por si mesmo”), máxima que, mais adiante, seria inspiradora e aprofundada por Adam Smith.
Saltando alguns capítulos na história econômica, deparamo-nos com o inglês John Maynard Keynes. Suas teorias foram inicialmente testadas, com êxito, nos EUA, após o “Crash de 29”, durante o governo Roosevelt, a partir de um conjunto de medidas denominadas New Deal (Novo Acordo). Ações semelhantes foram implementadas após a 2ª Guerra Mundial, para reconstrução da Europa, por meio do Plano Marshall. Eis uma das principais teses keynesianas: em contextos de crise econômica grave, como na depressão econômica, a “mão invisível” do mercado não é suficiente para resolver os flagelos sociais e a aguda anemia econômica. O Estado, nessas horas, não pode simplesmente lavar as mãos. Deve adotar uma política fiscal e monetária contracíclica (temporária) que estimule o crédito e aumente os gastos públicos, por meio do endividamento e até da expansão criteriosa dos meios de pagamento (moeda), priorizando ações em proteção dos cidadãos economicamente vulneráveis e atentando para redirecionar despesas supérfluas e privilégios públicos e privados. Não se trata de “Estado máximo” ou “Estado-Pilatos”, mas de um “Estado necessário”, à altura da crise, cujo papel encontra considerável consenso até entre as correntes econômicas mais ortodoxas. Se as concepções econômicas apontam caminhos distintos para o Estado em tempos de normalidade, em momentos de crise econômica aguda, como agora, Smith estende uma mão visível para Keynes.
Tal política expansionista, convém mencionar, tem respaldo na própria Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e na legislação (Decreto de Calamidade, por exemplo), que regula os gastos públicos nesses tempos de quarentena fiscal. A fim de conferir maior segurança jurídica aos gestores e acelerar a execução das medidas de enfrentamento da crise, discute-se, neste momento, no Congresso Nacional, uma proposta de Emenda Constitucional (PEC 10/20) para instituir o chamado “Orçamento de Guerra” (regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações), que, entre outros propósitos, pretende segregar a aplicação de recursos voltados exclusivamente para o combate aos efeitos da pandemia, separando-os daqueles já consignados no orçamento fiscal em vigor. O fato é que, enquanto perdurar a calamidade, a execução das despesas atinentes à crise será simplificada e serão suspensas ou mitigadas, por exemplo, vedações e sanções relacionadas a metas fiscais, endividamento, regra de ouro, renúncia de receitas, teto de gastos, expansão de despesas não permanentes e contingenciamentos. O próprio STF, em recente decisão do Ministro Alexandre de Moraes (ADI 6.357), compreendendo a excepcionalidade do contexto-catástrofe, suspendeu, cautelarmente, a aplicação de artigos da LRF durante o prazo da calamidade, obrigando, no entanto, a Administração a comprovar que os recursos foram, de fato, destinados ao combate da pandemia.
Para os Tribunais de Contas e todo o sistema de controle, um desafio a mais: equilibrar o papel de colaborar com a gestão, compreendendo o contexto grave e emergencial, na linha do que já fez o STF, sem prescindir, contudo, do olhar atento à fiel, responsável, proba e transparente aplicação dos recursos no combate à pandemia, aos seus efeitos na economia e em defesa da vida. Afinal, quarentena fiscal, ainda que em tempos de “guerra”, não significa salvo-conduto ou cheque em branco.
*Valdecir Pascoal – Conselheiro e Diretor da Escola de Contas do TCE-PE Artigo publicado no JOTA em 5/4/2020