Leia o artigo do presidente do TCM-SP João Antônio da Silva Filho

O julgamento da ADPF 272 e a natureza jurídica do Tribunal de Contas paulistano

Por João Antonio da Silva Filho

Introdução
O Supremo Tribunal Federal, em recente julgamento, teve a oportunidade de se debruçar, mais uma vez, sobre a estrutura e composição do Tribunal de Contas do município de São Paulo. Refiro-me ao acórdão proferido na Arguição de Descumprimento Fundamental nº 272, de relatoria da ministra Carmen Lúcia, julgada em 25 de março deste ano, que tratou sobre organização e regulamentação do ministério público na corte de contas paulistana.

Ao apreciar o tema, seguindo à unanimidade o voto da relatora, o Supremo assim se posicionou:

“Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata de julgamento, por unanimidade, em julgar improcedente a presente arguição de descumprimento de preceito fundamental por não estar configurada omissão legislativa na criação de Ministério Público especial no Tribunal de Contas do município de São Paulo, nos termos do voto da Relatora” (grifos do autor).

O presente artigo pretende, à luz deste julgado e de outras decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, analisar a natureza jurídica e o enquadramento conferido pela Constituição Federal de 1988 ao Tribunal de Contas do município de São Paulo e examinar brevemente a aplicação do princípio da simetria à composição e estruturação dessa corte de contas.

1) Breve histórico do Tribunal de Contas do município de São Paulo
O Tribunal de Contas do município de São Paulo (TCM-SP) teve sua criação instituída pela Lei Municipal nº 7.213, de 20 de novembro de 1968, encontrando seu fundamento de validade, à época, na Constituição Federal de 1967 e na Constituição do Estado de São Paulo também daquele ano, que explicitamente autorizavam sua criação, esta última fixando em cinco o número de membros do tribunal.

A Constituição Federal de 1988 recepcionou as duas únicas cortes de contas do município à época existentes no momento de sua promulgação — TCM-SP e TCM-RJ —, mantendo-se a exata forma, estrutura e composição então existentes, vedando-se a criação de novos tribunais de contas em um único município, posição esta, inclusive, recentemente corroborada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs 342 e 4776, como será adiante explicitado.

Cabe registrar, nestas breves linhas, a relevância do Tribunal de Contas de São Paulo no contexto dos organismos de controle externo no Brasil, dadas as dimensões e a importância político/econômica da cidade de São Paulo no contexto nacional e mundial.

2) Controle externo da Administração Pública e a natureza jurídica da corte de contas do município de São Paulo
As cortes de contas estão previstas nos artigos 70 a 75 c/c artigo 31 da Constituição da República de 1988, tendo recebido do constituinte grande parte das competências atribuídas ao controle externo da Administração Pública no país. São instituições essenciais ao sistema político brasileiro, eis que contribuem para a correta e eficiente aplicação dos recursos públicos.

Em razão da redação do artigo 71 da Constituição Federal, que estabelece que “o controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União (…)”, há quem defenda que as cortes de contas seriam órgãos vinculados ao Poder Legislativo.

Ainda que se possa argumentar que os tribunais de contas possuam regime jurídico peculiar, o que dificultaria a avaliação de sua natureza jurídica, nomes como Pontes de Miranda, Hely Lopes Meirelles, Celso Antonio Bandeira de Mello e Odete Medauar, entre outros, entendem desde há muito que os tribunais de contas são órgãos autônomos de matriz constitucional, os quais não estão vinculados a nenhum dos poderes instituídos.

Nesse sentido é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

“(…) Como o Texto Maior desdenhou designá-lo como Poder, é inútil ou improfícuo perguntarmo-nos se seria ou não um Poder. Basta-nos uma conclusão a meu ver irrefutável: o Tribunal de Contas, em nosso sistema, é um conjunto orgânico perfeitamente autônomo” [1].

Esse é, ademais, o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que pode ser sintetizado em trecho do voto do ministro Celso de Melo, no julgamento da ADI nº 4190:

Os tribunais de contas ostentam posição eminente na estrutura constitucional brasileira, não se achando subordinados, por qualquer vínculo de ordem hierárquica, ao Poder Legislativo, de que não são órgãos delegatários nem organismos de mero assessoramento técnico. A competência institucional dos tribunais de contas não deriva, por isso mesmo, de delegação dos órgãos do Poder Legislativo, mas traduz emanação que resulta, primariamente, da própria Constituição da República.

A Constituição Federal estendeu a autonomia e prerrogativas do Tribunal de Contas da União (TCU) às demais cortes de contas, criando um verdadeiro “regime jurídico único dos tribunais de contas”, conforme expressa previsão do artigo 75 da Constituição Federal:

“Artigo 75 — As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos tribunais e conselhos de contas dos municípios”.

Ives Gandra da Silva Martins, ao delimitar o sentido da expressão “no que couber” constante do artigo 75, registra que sua extensão diz respeito tão somente às peculiaridades dos entes federativos estaduais e municipais, assim, “deve-se entender que a mesma autonomia que goza o TCU gozam as demais Cortes de Contas, razão pela qual a interpretação dos textos maiores dos demais entes federativos não pode ser realizada sem sua integração analógica com o artigo75” [2].

Direito não é somente a norma, Direito é norma interpretada e aplicada. Se não há do ponto de vista das atribuições diferenciação nas competências constitucionais para os 33 tribunais de contas existentes na federação, não há razão para não se incluir na interpretação do artigo 75 os tribunais de contas das cidades do porte das duas maiores capitais do país, São Paulo e Rio de Janeiro.

Nesse sentido, em reiteradas decisões, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a autonomia e independência do Tribunal de Contas do município de São Paulo, conferindo-lhe, assim, a mesma natureza jurídica de ente constitucional autônomo, reconhecida a todos os tribunais de contas do país.

Tal posicionamento foi confirmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 272. A despeito das considerações expendidas acerca da não aplicação do princípio da simetria, o Supremo reafirmou posição quanto ao reconhecimento ao TCM-SP dos traços fundamentais das cortes de contas, qual sejam, sua a autonomia e independência a qualquer dos poderes constituídos, conforme ementa deste julgado de:

“1 — O Tribunal de Contas do município de São Paulo é órgão autônomo e independente, com atuação circunscrita à esfera municipal, composto por servidores municipais, com a função de auxiliar a Câmara Municipal no controle externo da fiscalização financeira e orçamentária do respectivo município”. (grifo do autor)

Dessa forma, qualquer diferenciação que leve a uma inferiorização dessa corte de contas, assim como a do município do Rio de Janeiro, não encontra amparo numa interpretação sistêmica e teleológica do texto Constitucional, ou na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

3) A assimetria ao Tribunal de Contas do município de São Paulo referida no julgamento da ADPF 272
Em debate realizado no Pleno do TCM-SP sobre a oportunidade e conveniência de apresentar memoriais ao STF em defesa da inclusão das carreiras técnicas na composição da corte de contas paulistana, registrei o entendimento de que a ausência de previsão de Ministério Público de Contas no âmbito deste tribunal não representava omissão legislativa, mas sim opção do legislador constituinte estadual e da Câmara Municipal de manterem a composição da corte até então existente.

Conclusão diversa implicaria a necessidade de se questionar a constitucionalidade da Constituição do Estado de São Paulo frente à Constituição Federal, para só então questionar-se eventual inércia do legislador municipal quanto à inexistência de um Ministério Público de Contas municipal.

Tal questionamento, no entanto, já havia sido submetido ao crivo do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4776, que tramita em conjunto com a ADI nº 346, na qual se discutiu a constitucionalidade do artigo 151 da Constituição do Estado de São Paulo.

Mencionada ADI foi julgada improcedente pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 3/6/2020, restando afastada a caracterização de qualquer inconstitucionalidade por omissão no âmbito do TCM-SP, isso porque, naqueles autos, o Supremo Tribunal Federal não apenas reconheceu a razoável a fixação em cinco conselheiros para o TCM-SP, como também afirmou que a estrutura atual não caracteriza ofensa ao princípio da simetria, conforme se extrai do item quatro da ementa do acórdão prolatado pelo Pretório Excelso:

“Ementa — Ação direta de inconstitucionalidade 2, Artigo 151, caput e parágrafo único, da Constituição do Estado de São Paulo. 3 — Disposição referente ao Tribunal de Contas do município de São Paulo.  Razoabilidade da fixação em cinco conselheiros para Tribunal de Contas de município, nos termos da Constituição Estadual e Lei Orgânica Municipal. Inexistência de ofensa ao princípio da simetria, que não exige identidade com a Constituição Federal. 6 — Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente” (grifo do autor).

Nesse julgamento, portanto, o Supremo ressaltou a ausência de ofensa ao princípio da simetria na composição do TCM-SP, tendo em vista não se exigir a repetição obrigatória dos termos da Constituição Federal aplicada à estrutura do Tribunal de Contas da União ao Tribunal de Contas do município, conforme se extrai de trecho do julgamento:

“Ora, se a Constituição prevê nove conselheiros para a composição do Tribunal de Contas da União e sete para a composição dos Tribunais de Contas dos Estados, é razoável que um Tribunal de Contas municipal tenha um número inferior de conselheiros, como os cinco fixados pela Constituição do Estado de São Paulo e pela Lei Orgânica do município de São Paulo. Desse modo, não se vislumbra nenhuma ofensa ao princípio da simetria, que, de resto, não exige identidade com a Constituição Federal”.

No julgamento da ADPF 272, entretanto, o voto da relatora, ao reconhecer a improcedência a ação, utiliza como fundamento a inaplicabilidade do princípio da simetria ao Tribunal de Contas do município, conforme se verifica de trecho da ementa do julgado:

“EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL POR OMISSÃO. ORGANIZAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO TRIBUNAL DE CONTAS DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. ARTIGOS 73, 75 E 130 DA CONSTITUIÇÃO INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA PARA OS TRIBUNAIS DE CONTAS DO MUNICÍPIO. (…) OMISSÃO LEGISLATIVA NÃO RECONHECIDA. ARGUIÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE”.

Esse novo entendimento, entretanto, deve ser examinada com prudência, não podendo ser considerado de forma isolada sem que se leve em conta o conjunto de decisões anteriores da Suprema Corte que enfrentaram questões relacionadas à estrutura dos Tribunais de Contas de São Paulo e Rio de Janeiro e que consolidaram não a inaplicabilidade do princípio da simetria a essas cortes de contas, mas, sim, a ausência de ofensa a esse princípio por não haver repetição idêntica da disposição prevista na Constituição Federal a esses tribunais de contas, tendo em vista ser natural a assimetria entre cortes de contas de entes federativos distintos.

Assim, o entendimento do Supremo expresso na ADPF 272 deve ser compreendido no sentido de que a inaplicabilidade do princípio da simetria refere-se apenas à composição das cortes de contas do município, tendo em vista a opção do constituinte em recepcionar tais tribunais da forma como estavam estabelecidos na ordem constitucional anterior.

Em palavras mais claras: as garantias, prerrogativas e competências que são conferidas pela Constituição a todas as cortes de contas também devem ser aplicadas ao Tribunal de Contas de São Paulo e do Rio de Janeiro, tendo em vista que o texto constitucional deixa implícito a existência de um sistema nacional de tribunais de contas, sujeitando-os, assim, a um mesmo regime jurídico no que toca às suas competências e prerrogativas.

O que se constata é que as recentes decisões do STF assentaram a constitucionalidade da atual estrutura do TCM-SP, fazendo com que o mérito debatido cessasse de pertencer à esfera do Judiciário. Cabe ponderar, entretanto, que das referidas decisões do Supremo não é possível se extrair o entendimento de que os legislativos paulista e paulistano estejam impedidos de realizar qualquer alteração na atual composição do TCM-SP.

Como destacado no voto do ministro relator Gilmar Mendes na ADI 4776, ainda que proferido em obter dictum, cabe aos legisladores competentes e aos interessados nesta matéria ampliarem o debate acerca de eventual alteração na composição do TCM-SP:

“No entanto, também a título de obter dictum, cabe deixar assentada a importância da norma constitucional que determina ao chefe do Poder Executivo a escolha alternada entre auditores e membros do Ministério Público perante o Tribunal de Contas (artigo 73, §2º, c/c artigo 75, ambos da CF). Cabe ao legislador municipal criar os parâmetros para a deliberação quanto ao preenchimento das vagas dos conseheiros”.

Assim, de tudo o que se expôs ao longo deste artigo, enumero as seguintes conclusões:

1) Sempre nos posicionamos pela improcedência da ADPF 272 por entender que não havia omissão legislativa quanto à ausência de previsão de Ministério Público de Contas no TCM-SP, mas, sim, uma vontade dos legisladores paulistas e paulistanos;

2) A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4776 declarou a constitucionalidade da composição do TCM-SP prevista no artigo 151 da Constituição do Estado de São Paulo, porém, não vedou a possibilidade de o legislador alterar a composição dessa corte de contas;

3) Portanto, quando afirmamos que a matéria está vencida no judiciário, nos referimos ao reconhecimento da constitucionalidade da atual composição e estrutura da corte, o que significa que a matéria pode continuar em debate no âmbito da sociedade e do Poder Legislativo;

4) Nesses termos, embora ressalve que sempre nos filiamos à corrente daqueles que defendem a simetria numérica entre os Tribunais de Contas dos Estados e municípios, ou seja, elevar o número de conselheiros para sete, criando as duas carreiras (Ministério Público de Contas e auditores) — tendo em vista a existência de um sistema nacional de tribunais de contas —, entendemos que essa matéria deixou de pertencer à esfera do Judiciário, tendo em vista o julgamento pela improcedência da ADPF examinada neste artigo e a declaração de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal do artigo 151 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

João Antonio da Silva Filho é conselheiro presidente do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autor das seguintes obras: “A Democracia e a Democracia em Norberto Bobbio”, “O Sujeito Oculto do Crime–Considerações Sobre a Teoria do Domínio do Fato” pela Editora Verbatim, “A Era do Direito Positivo” e “Tribunais de Contas no Estado Democrático e os Desafios do Controle Externo” publicados pela Editora Contracorrente.

Publicado em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-22/silva-filho-julgamento-adpf-272-natureza-tcm-sp

 

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