Leia o artigo do conselheiro Valdecir Pascoal (TCE-PE): “Entre o céu e o mar”

As condições para um combate mais efetivo à corrupção que assola o Brasil desde a famosa “Carta de Pero Vaz de Caminha” estavam presentes naqueles idos de 2013 e 2014: ambiente democrático e de liberdades (expressão e imprensa), fortalecimento das atribuições e da autonomia do Judiciário e dos demais órgãos de controle pela Constituição Federal de 1988, aprovação pelo Congresso Nacional de um ordenamento jurídico de vanguarda (leis: improbidade, licitações, ficha limpa, LRF, acesso à informação, anticorrupção e normas penais que introduziram institutos como a colaboração premiada e tipificaram os crimes de lavagem de dinheiro e organização criminosa).

Tudo isso aliado a uma sociedade bradando retumbantemente por ética e qualidade nos serviços públicos.A Lava Jato surge nessa fértil quadra histórica. Passados 7 anos, ela acaba de ser extinta. Decerto que não é o fim do combate à corrupção. Aliás, combatê-la é tarefa humana permanente. Todavia, mesmo sem o distanciamento histórico ideal e ciente de que o tema é espinhoso e suscetível a paixões binárias, é preciso enfrentar uma reflexão sobre o seus legados e as lições que podem aprimorar esse histórico desafio republicano.

O principal contributo da operação foi ter escancarado, como nunca, o mecanismo deletério e sistêmico de desvios de recursos e enriquecimento ilícito de agentes públicos e privados em contratos administrativos e financiamento de campanhas políticas. Além do choque de transparência dessa triste realidade, comprovou-se que existem instrumentos efetivos para proteger o erário e responsabilizar os malfeitores, incluindo os que orbitam altos escalões da república e do poder econômico. Restou igualmente evidenciado que a corrupção sistêmica só se combate com uma atuação integrada, e em rede, das instituições de controle incumbidas da persecução penal e da fiscalização eleitoral, tributária, financeira e de contas públicas (Ministérios Públicos, Polícias, Tribunais de Contas, Controladorias Internas, Órgãos Tributários, COAF, dentre outros). Este é um lado da moeda, a metade cheia do copo.

O bom legado, porém, enfrentou percalços. É consensual a necessidade de aprimorar as regras do jogo desse combate. Sem a observância de um processo legal justo, o resultado pode ser mitigado por nulidades, desproporções e erros. O processo, como a mulher de César, precisa ser e parecer legal e devido (idôneo). E o curioso – e, ao mesmo tempo, lamentável – é constatar que os problemas que deixam um relativo travo de amargura poderiam, em grande medida, ter sido evitados a partir de um olhar mais atento e maduro sobre as experiências de operações semelhantes, na Itália (Mãos Limpas) e no Brasil (Satiagraha, Castelo de areia e Boi barrica). Sem esquecer da Ação Penal 470 no STF (conhecida como “Mensalão”), que, diferentemente daquelas citadas, não foi objeto de maiores questionamentos de natureza processual.

Pode-se ir mais longe na história. Já se disse que nada escapou à sabedoria dos gregos. A cada dia, confirmo tal assertiva. Quase tudo que vivemos ou discutimos hoje sobre os desafios da humanidade já foi, de alguma forma, objeto de debates e reflexões na seara filosófica ou mitológica da Grécia antiga. Para não repetirmos os infortúnios e buscarmos a excelência do combate à corrupção, o que nos ensina a milenar sabedoria grega? Lembrando que, mutatis mutandis, são lições válidas e apropriadas para todas as modalidades de controle institucional da administração pública, incluindo o processo de controle que ocorre quando da apreciação das contas públicas pelos Tribunais de Contas.

À Grécia, então. A deusa da Justiça, Têmis, implora atenção redobrada para o significado da venda nos seus olhos e da balança, com dois pratos, que ela segura nas mãos. Imparcialidade e equilíbrio na condução dos processos é direito inalienável à boa justiça. O julgador precisa ter uma postura de manifesta equidistância das partes e garantir paridade de armas. Quando uma das partes é o Ministério Público, a cautela precisa ser ainda maior, considerando a já natural proximidade decorrente da nascente estatal das duas relevantes funções (Estado-Julgador e Estado-Acusador). A igualdade no tratamento das partes não permite exceções. O xadrez processual não endossa estratagemas do tipo “Gambito”, nem combina com a aplicação da “Lei de Gerson”, do jeitinho, sob a alegação de que são filigranas ou de que os fins justificam os meios. Ainda: a fundamental atuação colaborativa em rede dos órgãos de controle, inclusive com os órgãos internacionais, não pode se sobrepor às formalidades que exigem uma justa relação processual.

Apeles, o famoso pintor, apela para que se lembrem do ocorrido com o Sapateiro, que, indo “além das sandálias”, decidiu criticar e opinar sobre outras partes de sua obra em exposição. Respeitar os limites de atuação e de suas atribuições é dever de quem julga e de quem acusa em nome do Estado. O controle não pode ser protagonista do debate político, sendo também incompatível com abusos (Bullying of control) ou cegueiras deliberadas (Willful Blindness). Inconcebível, pois, a
prática de “darwinismos” seletivos, sem critérios, sobre quem deve serinvestigado, fiscalizado ou poupado. Narciso lamenta a fixação exacerbada no espelho-ego e alerta que a vaidade e a busca de heroísmos, a todo custo, podem inebriar as pessoas, como os ilusórios cantos das sereias. Na atual sociedade do espetáculo não é incomum constatar certa banalização de ações e denúncias. Reverberadas pelos meios de comunicação e potencializadas pelas redes (anti)sociais, elas acabam indo ao encontro dos anseios, por vezes justiceiros, de uma sociedade sofrida e indignada. Resultado: aplausos, ainda que o preço seja, em alguns casos, a desconstrução indevida de reputações.

Apolo, o deus sol, ilumina com duas máximas estampadas no seu Oráculo, em Delfos: “Conhece a ti mesmo” e “Nada em excesso”. Precisamos – todos os agentes do controle – reconhecer os avanços, os bons legados, mas não fechar os olhos para os infortúnios, para o copo meio vazio. Será a partir de uma autorreflexão profunda, leal e corajosa que o combate à corrupção encontrará a calibragem ideal que permita alcançar um padrão de efetividade sustentável, institucional, impessoal e em perfeita harmonia com o Estado Democrático de Direito.

Os meios de comunicação, atores essenciais na tradução e mediação dos fatos e atos processuais com a sociedade, igualmente precisam fazer um balanço da sua cobertura. Impõe-se reforçar as premissas de um jornalismo mais investigativo e propiciar ao cidadão um contraditório amplo e debates plurais dos fatos investigados e noticiados, sem deixar de exercer o senso crítico também em relação às informações e dados recebidos das suas fontes, ainda que provenham de autoridades públicas do controle.

Outro aspecto fundamental do “Conhece a ti mesmo” é ter a ciência da real dimensão do hercúleo propósito de combater a corrupção. Ainda que tal combate, quando executado com a participação das instituições de controle, consiga a mais alta performance em termos de responsabilização e diminuição da impunidade, os níveis de corrupção só serão mitigados a padrões não sistêmicos, comparáveis aos verificados em países com alto grau de accountability, à medida que outras questões e desafios históricos e estruturais sejam enfrentados.

Dentre esses, incluem-se, por exemplo, a aprovação de uma reforma política que iniba a força do poder econômico nas eleições, a melhoria da educação pública, a regulamentação do lobby e a racionalização dos recursos processuais. Com efeito, a dimensão do combate à corrupção é bem maior e transcende o importante papel do Controle institucional.

Nada obstante, se o equilíbrio e o bom senso, também refletidos na sabedoria grega do “Nada em excesso”, devem permear a atuação dos Controles, da imprensa e da própria sociedade, é preciso cuidado com os mal intencionados de sempre que, a despeito de criticar os excessos do combate à corrupção, aproveitam-se para desprezar o bem feito e criar um ambiente de fragilização e desconstrução das instituições responsáveis por esse mister. É preciso ser justo para saber diferenciar aqueles que historicamente têm uma postura dolosamente anticontrole, não republicana, de outros atores sociais e institucionais que desejam aprimorá-lo na busca da boa justiça, observada a moldura do Estado Democrático de Direito. O honesto desejo dessa postura-síntese não pode, de forma alguma, significar o aviltamento da vigilância, nem trazer de volta a impunidade como regra.

Ícaro conclui que o voo com destino ao bom combate à corrupção deve continuar, mas pede que aprendam com a experiência, inclusive a dele próprio, ao tentar se livrar do tenebroso labirinto: o voo não pode ser tão próximo do céu, pois o sol pode queimar as asas do afoito, nem tão próximo das ondas, sob pena de naufragar o hesitante.
P.S.: “Ética a Nicómaco”, de Aristóteles, deve ser relido a cada ano.
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Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE. Foi Presidente da Atricon (Associaçãodos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil – 2014-2017). Autor de livros, dentre eles: “Uma nova primavera para os Tribunais de Contas” (Fórum) e “Direito Financeiro e Controle Externo”

Publicado no Jornal do Commercio e no site JOTA (PE).

 

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