Pautado pela suposta justificativa de que deve ser “assegurado ao administrador maior certeza das consequências do julgamento proferido pelos Tribunais de Contas do Brasil”[1], a Câmara dos Deputados aprovou, no dia 24 de junho, em regime de urgência, o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 9/2021, que busca conferir nova redação ao art. 1º, I, “g” da Lei Complementar (LC) nº 64, de 1990, cujo texto havia sido alterado pela LC nº 135, de 2010, a intitulada “Lei da Ficha Limpa”.
A redação atual dispõe que são inelegíveis para qualquer cargo “os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”.
O PLP 9/2021 objetiva afastar do rol de inelegíveis “aqueles agentes que forem condenados, exclusivamente, à pena de multa”. Mas, qual o sentido e alcance dessa inserção de texto legislativo?
Vejamos o que diz a justificação do projeto: “não está em discussão a sanção de imposição de débito, igualmente, prevista nas leis que regem os Tribunais de Contas”. Avança a justificação: “o que se deseja estabelecer com a inserção da frase ao texto, é que os sancionados apenas com multa, não sejam declarados inelegíveis, posto que esta sanção, como previsto em lei e soe acontecer, somente é aplicada a pequenas infrações, sem dano ao erário, de simples caráter formal e, sobretudo, sem a ocorrência de atuação dolosa por parte do administrado” [sic].
Daí surge a necessidade de esclarecer alguns equívocos. Primeiro: a imposição em débito não é sanção, é reparação. Segundo: A sanção, no âmbito dos Tribunais de Contas, tem caráter instrumental, dissuasivo, pedagógico, visando a “proteger a vigência das normas”, desestimulando aquele que maneja recursos públicos a transgredir. Terceiro: a análise de consciência e vontade do agente (dolo) – elemento subjetivo da conduta – não se confunde com a natureza e gravidade da infração.
Nesse sentido, a aplicação de multa não decorre necessária e exclusivamente da gravidade da infração ou do conjunto de irregularidades apurados no processo de controle externo.
Para além disso, esclareça-se que, a uma, nem todo débito imputado configura, necessariamente, ato doloso de improbidade administrativa; a duas, nem toda ausência de imputação em débito significa que a irregularidade seja de menor gravidade: há, sim, irregularidades graves e danosas que não ensejam imputação em débito.[2]
Cite-se, a título de exemplo, as contratações diretas fora das hipóteses previstas em lei, quando reste evidenciada a prestação dos serviços. Nesse caso, a irregularidade não enseja à imputação em débito, até para não haver o enriquecimento sem causa da Administração Pública, mas isso não desnatura a gravidade da infração, que se constitui, inclusive, em crime licitatório.
Da mesma forma, a contratação de pessoal ao arrepio do Texto Constitucional[3], conduta tipificada como fraude ao concurso público na Lei nº 8.429, de 1992, também pode não ensejar imputação em débito caso reste comprovada a prestação dos serviços.
Porém, nesses casos, nada obsta que dessa conduta lesiva do agente possa sobrevir o reconhecimento de irregularidade insanável que configura ato doloso de improbidade administrativa, enquadrável, inclusive, no artigo 1º, inciso I, alínea “g” da LC 64/90.
Conhecendo o legislador os Tribunais de Contas, é sabido que a apreciação das contas de governo não enseja aplicação de multa ou imputação em débito, o que evidencia que a alteração em curso quis blindar os chefes do Poder Executivo do radar de possíveis inelegíveis de que trata o art. 1º, inciso I, “g” da LC 64, de 1990.
Contudo, partiu de premissas e conceitos equivocados, o que, na prática, poderá tornar inócua a inserção do texto na alínea, inviabilizando a aplicabilidade, caso venha a ser convertido em lei, em razão da impossibilidade de se transformar o texto normativo em norma.[4]
É que se fosse possível concluir que a imputação em débito – e sua natureza reparatória – é fator essencial para se considerar uma “irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa”, poderíamos incorrer no equívoco de considerar inelegíveis, por exemplo, aqueles que tiverem contas julgadas regulares com ressalvas, mas com débito imputado, desconsiderando, assim, a inequívoca distinção entre o que é sanção e o que é reparação.
Assim, se o legislador busca “assegurar interpretação consentânea com a gravidade do fato em julgamento”, conforme descrito na justificação, a atual redação do art. 1º, I, “g” da LC 64, de 1990, já oferta critérios suficientes e confiáveis para tanto, na medida em que somente permite a inclusão no rol de inelegíveis daqueles que tiverem contas rejeitadas por irregularidades insanáveis que configurem ato doloso de improbidade administrativa. Aliás, a caracterização do ato como sendo ímprobo, inclusive na redação final do PL 10.887-A, de 2018, depende da conduta do agente, e não da sanção.
Portanto, a mudança, em regime de urgência, não se revela oportuna, nem pertinente, e muito menos positiva à agenda da defesa da probidade na gestão de recursos públicos e do processo eleitoral limpo. Resta, assim, que o Senado Federal atue para evitar que ela ingresse no ordenamento jurídico.
[1] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/777301-deputados-aprovam-possibilidade-de-candidatura-de-gestor-que-teve-contas-rejeitadas-e-foi-punido-apenas-com-multa-acompanhe/>.
[2] Nesse sentido é a inteligência do §2º do artigo 13 do Decreto n. 9.830, de 10 de junho de 2019, que regulamenta o disposto nos art. 20 ao art. 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, que institui a Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro, cujo teor dispõe que eventual estimativa de prejuízo causado ao erário não poderá ser considerada isolada e exclusivamente como motivação para se concluir pela irregularidade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos.
[3] Nos termos do inc. V, do art. 11, da Lei 8.429/92, constitui ato de improbidade que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, notadamente a prática de ato que vise a frustrar a licitude do concurso público. Nesse sentido, ‘a contratação de funcionários sem a observação das normas de regência dos concursos públicos caracteriza improbidade administrativa’ (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 817.557/ES, rel. Min. Herman Benjamin, Dje 10.02.2010, 10.08.2010).
[4] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios. 19. ed. rev e atua. – São Paulo: Malheiros, 2019. p. 50