Diante do que, esta é bem a hora de sanear ideias políticas e de reciclar interesses corporativos obsoletos, em benefício do marco regulatório do saneamento, decisivo para tirar o país do atraso secular em área tão essencial.
Comentários do presidente do TCE-MS, conselheiro Ivan Coelho das Neves.
No Brasil, 35 milhões de pessoas não têm acesso à agua tratada e mais de cem milhões não contam com serviços de coleta de esgoto, com o agravante de que apenas 45% dos esgotos coletados são devidamente tratados.
Esses números, por si só constrangedores, configuram panorama ainda mais desolador quando se sabe que as doenças acarretadas pela falta de saneamento – portanto, evitáveis – levam o SUS a gastar anualmente R$ 217 milhões em internações e procedimentos ambulatoriais, segundo levantamento de 2019. Somente em 2018 foram 487 mil internações por esse motivo, ou seja, 1.300 por dia. Especialistas dizem que as despesas estão subestimadas.
Nesse cenário, a sanção, pelo presidente Bolsonaro, da Lei 14.036/2020, instituindo o Marco Legal do Saneamento, desenha perspectivas de que, enfim, o país possa, de forma paulatina e consistente, saldar esse enorme déficit social e sanitário até 31 de dezembro de 2033, quando 99% da população estaria recebendo água tratada, e 90% dos brasileiros sendo atendidos por coleta e tratamento de esgoto.
Para alcançar essa universalização, estudos indicam que será necessário investir cerca de R$ 400 bilhões até aquela data. Investimentos que obviamente deverão advir da iniciativa privada, vez que o poder público – União, estados e municípios – não tem a menor possibilidade de financiá-los.
Ansiosamente aguardado por investidores, e proclamado pelo Executivo e pelo Congresso como definição de segurança jurídica para a atração de grande injeção de recursos em área crucial de nossa infraestrutura, o marco legal do saneamento corre o risco de enfrentar desgastante e inoportuno processo de judicialização.
Ao sancionar a Lei 14.036/2020, o presidente da República apôs alguns vetos que, mesmo guardando total coerência com os fundamentos do novo marco legal, desagradaram alguns governadores e a cúpula do Congresso, que alegam ruptura, pelo Executivo, de acordo negociado para aprovação da lei.
O mais controverso desses vetos suprimiu a garantia de que empresas públicas ou sociedades de economia mista que prestam serviços de saneamento básico pudessem renovar seus contratos por mais trinta anos, sem licitação pública. O que, na visão do Poder Executivo, iria “postergar soluções para os impactos ambientais e de saúde pública decorrentes da falta de saneamento básico e da gestão inadequada da limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos”.
Embora parlamentares e governadores aleguem que o artigo vetado garantiria uma regra de transição e sobrevida às estatais no novo modelo, parece fora de dúvida que assegurar mais trinta anos de contrato, sem qualquer processo licitatório, desfiguraria irremediavelmente o novo marco legal já em seu nascedouro.
Como argumenta o Executivo ao justificar o veto, “a proposta, além de limitar a livre-iniciativa e a livre concorrência, está em descompasso com os objetivos do marco legal do saneamento básico que orienta a celebração de contratos de concessão, mediante prévia licitação, estimulando a competitividade da prestação desses serviços com eficiência e eficácia, o que por sua vez contribui para melhores resultados.”
Outro dos vetos presidenciais diz respeito ao artigo que desobrigava de licitação os contratos de serviços de resíduos sólidos e drenagem, como se fosse factível fatiar o saneamento básico que, como é sabido, só se efetiva totalmente com a conjugação da oferta de água tratada, captação e tratamento de esgoto, coleta e processamento do lixo urbano, e, inclusive, rede de escoamento de águas pluviais.
Ainda que parlamentares e governadores descontentes possam argumentar, com alguma razão, que os vetos do Presidente romperam acordos negociados por seus líderes no Legislativo, o novo marco regulatório do saneamento não deve acolher exceções que, claramente, vão na contramão da própria essência renovadora que inspira a Lei 14.036/2020.
Há, porém, forte tendência de que o Congresso derrube ao menos um veto presidencial – ao artigo que faculta estender contratos por mais trinta anos, sem licitação –, o que certamente remeteria o assunto ao Judiciário, com investidores privados e organismos liberais buscando garantir princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.
Uma eventual – e hoje muito provável – judicialização de tema tão urgente quanto estratégico para um país com graves e crônicos déficits no saneamento seria profundamente lamentável.
Em primeiro lugar, porque adiaria, por meses ou até anos, a instauração, de fato e de direito, de uma ‘era’ capaz de remover do país, a médio prazo, índices que nos mantêm no século dezenove, em termos de saneamento básico.
Em segundo lugar, porque, até que viesse uma decisão final, a insegurança jurídica afugentaria, pelo menos na primeira hora, boa parte dos grandes investimentos privados, para os quais o setor é dos mais atrativos.
Diante do que, esta é bem a hora de sanear as ideias políticas e de reciclar interesses corporativos obsoletos, em benefício do marco regulatório do saneamento, decisivo para tirar o país do atraso secular em área tão essencial.
*Iran Coelho das Neves é Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul.