A nova lei de licitações e a segregação de funções
*Ismar Viana
Da apuração da irregularidade à expedição de cautelares.
Prestes a ingressar no ordenamento jurídico brasileiro, a redação final da “nova lei de licitações”, contemplada no PL 4.253/20, cuidou de reforçar pilares do devido processo legal ao tratar da fiscalização dos atos nela previstos, revelando a preocupação com a melhoria da qualidade decisória dos Tribunais de Contas, inclusive quando se tratar de suspensão cautelar de processos licitatórios.
O texto condiciona a apuração de irregularidades ao dever de observância da segregação de funções, da imparcialidade, da individualização de condutas e da elaboração de relatórios tecnicamente fundamentados, baseados exclusivamente nas evidências obtidas e organizados de acordo com as normas de auditoria do respectivo órgão de controle (artigos 168, §3º, II e 170, II).
Assim, ao tempo em que manteve o Tribunal de Contas como Instituição receptora das denúncias e representações de irregularidades na aplicação da lei (art. 169, §4º), buscou evitar que interesses pessoais e interpretações tendenciosas interfiram na apuração e julgamento dos fatos levados ao conhecimento dessas instituições de controle, até para que interrupções injustificadas de políticas públicas não venham a comprometer a regular e tempestiva prestação de serviços públicos.
Referidas disposições legais traduzem o dever de observância do devido processo legal na esfera de controle externo como condição de legitimidade processual-decisória (arts. 71 e 73 c/c 96, I, “a” da CRFB/88), corroborando com a imprescindibilidade de manifestações técnicas como peças processuais obrigatórias, inclusive quando se tratar de suspensão de processos licitatórios, ainda que a urgência venha a demandar atuação imediata da instituição de controle.
Quanto à segregação de funções, independentemente de previsão expressa na nova lei de licitações, cumpre registrar que o modelo adotado pela Constituição Federal para a auditoria do setor público foi o de Tribunal de Contas – e não o de Auditoria Geral -, com capacidade sancionatória própria, do que resulta possível concluir que a colegialidade processual-decisória é condição essencial à legitimidade de atuação dessas instituições, de modo que as decisões monocráticas representam exceção, cuja eficácia plena se aperfeiçoa com o referendo do colegiado judicante.
Isso se deve, também, à ausência de relação de subordinação hierárquica entre agente controlador e agente controlado, cujos atos gozam de presunção de legitimidade. Somente a pluralidade de manifestações instrutórias e judicantes na esfera de controle exercida pelos Tribunais de Contas, instituições colegiadas, tem o condão de justificar a prevalência sobre o ato unipessoal praticado no âmbito da função administrativa, órgãos singulares, inclusive para evitar reforço às críticas de risco de imposição de um pensamento único por parte dos órgãos de controle1.
Essa preocupação, aliás, também é refletida no artigo 13 do decreto 9.830/19, que regulamenta os artigos 20 a 30 da LINDB, que é claro ao dispor que a análise da regularidade da decisão não poderá substituir a atribuição do agente público, dos órgãos ou das entidades da Administração Pública no exercício de suas atribuições e competências, inclusive quanto à definição de políticas públicas2.
Para tanto, no âmbito dos Tribunais de Contas são consideradas “etapas do processo a instrução, o parecer do MP e o julgamento ou a apreciação”, consoante expressamente previsto no artigo 156 do Regimento Interno do Tribunal de Contas da União (RITCU), que impõe aos auditores de controle externo, na etapa (fase) de instrução, as mesmas regras de impedimentos e suspeições dos ministros, elencadas no inciso VIII do art. 39.
A delimitação da fase de instrução, por sua vez, é desenhada no RITCU (artigo 160 e parágrafos), dispondo que nela se dá o exercício da ampla defesa, admitindo-se a juntada de documentos até o seu término, e aduzindo que se considera terminada a etapa de instrução processual quando o titular da unidade técnica emite seu parecer conclusivo, sem deixar dúvidas sobre a segregação de funções entre a instrução e o julgamento.
Como os Tribunais de Contas concentram, dentro de uma mesma estrutura institucional, as funções investigatórias/acusatórias e judicantes – diferente do processo judicial, em que o desempenho delas se materializa por meio de órgãos distintos – esse desenho estampado nas normas regimentais se amolda ao princípio acusatório, a partir de aspectos estruturais que guardam direta relação com o devido processo legal substancial, a exemplo da necessária independência entre as unidades de auditoria e instrução processual e o colegiado julgador, concretizando a devida segregação entre quem instrui e acusa e quem julga, premissas da imparcialidade das investigações e dos julgamentos no âmbito do Controle Externo exercido pelos Tribunais de Contas no Brasil.
Pois bem. O advento da nova lei de licitações reforça que a tomada de decisão que der ensejo à suspensão de processos licitatórios, no âmbito do controle das contratações pelos Tribunais de Contas, não pode ser concentrada na atuação de um só agente, como um ato controlador unipessoal, sob pena de comprometer a imparcialidade no controle dos atos a que o texto da nova lei de licitações visa alcançar (art. 170, II).
É bem verdade que há situações em que a iminência do risco de ocorrência do evento danoso exige providências imediatas e que não podem se sujeitar ao prazo ordinariamente previsto para análise pelo órgão de auditoria de controle externo, demandando que a análise do órgão técnico se dê em tempo hábil para não comprometer a eficácia da medida cautelar a ser expedida. Isso, contudo, não pode ser entendido como dispensa dessa análise.
Não por outra razão esse caminho se encontra contemplado no §6º do art. 250 do RITCU, que, ao versar sobre a apreciação de processos relativos à fiscalização de atos e contratos, impõe à unidade técnica responsável pela fiscalização que priorize a instrução processual quando as matérias objetos da oitiva possam resultar em decisão do Tribunal no sentido de desconstituir ato ou processo administrativo e demandarem urgente decisão de mérito.
Dessarte, parece evidente que a proatividade dos Tribunais de Contas para prevenir a ocorrência de dano ao erário, materializada por meio da expedição de medidas cautelares, não pode prescindir do dever de observar a segregação de funções entre a atividade instrutória, a cargo dos órgãos de auditoria de controle externo, e a atividade judicante, a cargo do colegiado julgador, mesmo quando a situação exigir urgência na atuação. A não observância desse dever, aliás, pode vir a dar azo a críticas sobre supostas interferências indevidas na função administrativa, deslegitimando a atuação controladora, que também se encontra sujeita à governança das contratações e que não é restrita à primeira linha de defesa
__________ 1 ARAÚJO, Thiago Cardoso. Função pedagógica na jurisprudência do TCU e retroalimentação legislativa. Revista Brasileira de Direito Público - RBDP, Belo Horizonte, ano 15, n. 58, p. 9-30, jul./set. 2017. 2 BRASIL. Decreto n. 9.830, de 10 de junho de 2019. Ismar Viana Mestre em Direito. Auditor de Controle Externo. Professor. Advogado. Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (IDASAN). Autor do Livro "Fundamentos do Processo de Controle Externo" e presidente da ANTC Brasil (Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil).
Artigo publicado no site Migalhas em 5.3.2021