Publicado no jornal Estadão
Há pouco mais de três décadas, no dia 5 de outubro, Ulysses Guimarães, ao eternizar a promulgação da Constituição com um discurso contundente, lembrou: “Em um país de 30,4 milhões de analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto”. Apesar dos significativos avanços, ainda somos um país com 1,5 milhão de crianças e adolescentes fora da escola, segundo o IBGE, e mais de 11 milhões de analfabetos com idade a partir de 15 anos.
Vale lembrar que, além desses 11 milhões de brasileiros, apontados pela Pnad Educação (2019), há também aqueles que, apesar de alfabetizados, não são capazes de compreender e interpretar um texto simples, os analfabetos funcionais. Nesse caso, três a cada 10 cidadãos encontram-se nessa situação, de acordo com o Inaf, divulgado em 2018 pela Ação Educativa e pelo Instituto Paulo Montenegro.
Essa realidade, já crônica antes da pandemia, certamente está agravada devido às dificuldades de ofertar educação aos estudantes, principalmente os da rede pública, durante esses 20 meses. Nesse período, os Tribunais de Contas lançaram diversas iniciativas para reduzir o impacto da crise sanitária na área da educação, que foram desde ações para garantir a distribuição de alimentação escolar aos estudantes em situação de vulnerabilidade social até a fiscalização da adoção de medidas sanitárias pelas escolas no retorno às aulas presenciais, além do estímulo às políticas de enfrentamento ao abandono escolar.
Volto à Constituição. Nossa Carta diz, no artigo 205, que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família. Será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. Alfabetizar jovens e adultos é uma tarefa complexa, que precisa ser desenvolvida com a participação de todos: de governos à comunidade escolar. Mas há outro ponto que também pode ser corrigido desde já: o investimento em educação no ensino fundamental para evitar o analfabetismo funcional. De acordo com uma avaliação federal realizada pelo Inep em 2019, pelo menos 45% dos estudantes do 2º ano do ensino fundamental não são capazes, por exemplo, de localizar uma informação explícita em um texto de até seis linhas.
Esses dados nos mostram que o processo de ensino não está sendo suficiente, em muitos casos, para transformar o aprendizado e o conhecimento em ferramentas que permitam viabilizar questões básicas do cotidiano. Para além do preparo desses milhões de crianças e jovens para o ingresso futuro no mercado de trabalho, há outra preocupação: a formação de cidadãos aptos a reconhecer a realidade em que estão inseridos e a buscar os seus direitos. Concluo repetindo Ulysses Guimarães: a cidadania começa com o alfabeto. E ela exige a habilidade de interpretar leis, direitos, deveres. Concretizar o texto constitucional passa pela conscientização de que a educação transforma, emancipa, oportuniza um futuro mais digno e é fundamental para o desenvolvimento do nosso país.
Cezar Miola, vice-presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon).