O Supremo Tribunal Federal, em outubro de 2022, concluiu o julgamento do Mandado de Segurança nº 35.506/DF. O acórdão proferido tem implicações relevantes na interpretação e no alcance das atribuições constitucionais do sistema de controle externo brasileiro.
A decisão do Supremo confirmou as competências do Tribunal de Contas da União para determinar, cautelarmente, a indisponibilidade de bens, bem como proceder à desconsideração da personalidade jurídica das empresas, responsabilizando diretamente sócios e administradores no intuito de coibir o abuso de direito, práticas fraudulentas e garantir a recomposição do erário.
Ressalto que essas competências não encontram previsão expressa na Constituição e, no caso da desconsideração da personalidade jurídica, sequer há norma infraconstitucional que contemple a previsão desse instituto na esfera processual das Cortes de Contas. Todavia, ao denegar a segurança, a maioria dos ministros buscou fundamento na conhecida Teoria dos Poderes Implícitos, segundo a qual os órgãos estatais podem dispor de atribuições instrumentais que assegurem o pleno exercício de seus objetivos constitucionais, ainda que estas não estejam positivadas no ordenamento jurídico.
Em relação à desconsideração da personalidade jurídica, argumento, também, que esse instituto tem origem jurisprudencial, ou seja, foi concebido independentemente da existência de lei em sentido estrito. Recordo o célebre precedente Salomon x Salomon & Co., julgado na Inglaterra do século 19, preconizando que o empresário responderia com seus bens pessoais, em caso de uso fraudulento de companhia comercial.
Igualmente, no Brasil, muito antes da positivação definitiva da desconsideração da personalidade jurídica, no Código Civil de 2002, os tribunais já assentiam que, presente o ilícito ou o desvio de finalidade da autonomia empresarial, os bens particulares dos sócios e administradores poderiam ser alcançados pelos credores em eventual ação judicial.
Com maior razão, mesmo sem lei específica, os Tribunais de Contas não poderiam renunciar à possibilidade de buscar, diretamente, o patrimônio privado dos sócios, administradores e empresários individuais, subtraindo-lhes da proteção negocial conferida pela pessoa jurídica quando esta é usada para de fraudar a administração pública e provocar prejuízo ao erário.
Até porque, as pessoas jurídicas são entes ficcionais. Na verdade, as pessoas físicas que as comandam são quem praticam os atos erráticos que podem revelar o abuso de direito ou desvio de finalidade.
Considerada essa perspectiva, sócios, gestores e administradores de empresas contratadas pela administração não escapam à jurisdição dos Tribunais de Contas, podendo responder de maneira direta, nos termos da parte final do art. 71, II, da Constituição, pelo qual cabe aos Tribunais de Contas julgar qualquer pessoa, física ou jurídica, pública ouprivada, que der causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo aos cofres públicos.
Ainda, a responsabilização pessoal daqueles que dirigem a entidade empresarial é medida de equidade. Costumeiramente, a atuação dos Tribunais de Contas acaba se concentrando nos agentes públicos.
Todavia, com a desconsideração da personalidade jurídica, as competências típicas do controle externo poderão alcançar mais facilmente as pessoas físicas que atuam em nome e por conta de empresas contratadas que, eventualmente, venham a lesar à administração. Nesses casos, comprovado o abuso da personalidade jurídica, empresários e sócios podem responder em igual proporção ao agente público que concorreu para o ilícito, em prestígio ao princípio da isonomia.
A doutrina especializada indica que ao descortinar o véu da figura empresarial para censurar seus gestores e sócios, os Tribunais de Contas devem observar algumas condicionantes. Em primeiro lugar, requer-se prova inequívoca do desvio de finalidade ou abuso de direito da pessoa jurídica, e, em segundo, cabe observar o contraditório e a ampla defesa, ainda que em momento diferido.
Por fim, necessário atender o princípio da intranscendência, de modo que a responsabilização recaia somente sobre os sócios e gestores faltosos ao imunizar aqueles que não concorreram para as práticas lesivas.
Logo, se bem aplicada pelos Tribunais de Contas, a desconsideração da personalidade jurídica é importante instrumento de efetividade da atuação dos órgãos constitucionais de controle externo e, por consequência, de preservação do patrimônio público.
DIMAS RAMALHO – Conselheiro-Presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.