“Até que uma dia chega no Tribunal de Contas” artigo do conselheiro Inaldo da Paixão (TCE-BA) e do analista de Controle Nelson Granato (TCE-PR)

Até que um dia chega no Tribunal de Contas

“Primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso, eu não era negro.

[…]

Agora estão me levando, mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.”

Não é usual no exórdio de um artigo sobre Tribunal de Contas citar uma poesia, mas a arte não é um modo de falar verdades amargas sem ser chato? E o poema acima, “É preciso agir”, do dramaturgo alemão Bertolt Bretch, segundo nos revelam as redes sociais, é o modo mais leve para ilustrar um problema grave (entre tantos!) do Brasil dos dias de hoje, nestes tempos tão trevosos: a destruição do Estado de bem-estar social e da democracia que vínhamos construindo desde a promulgação da Constituição de 1988.

Será que alguém está seguro? A investida mais recente é contra uma instituição centenária que muitas pessoas (por ingenuidade ou orgulho) pensavam estar imune a esse processo: os Tribunais de Contas.

A Secretaria do Tesouro Nacional (STN) colocou em consulta pública uma proposta de alteração da Portaria nº 501/2017, do (antigo) Ministério da Fazenda, que classifica os Estados e Municípios por capacidade de pagamento de dívidas para fins de autorização para contratação de empréstimos. A intenção é que os dados financeiros que embasam esta classificação de risco sejam auditados […] seja pelos Tribunais de Contas […] seja por firmas de auditoria, as denominadas EPAs (empresas privadas de auditoria).

Desse modo, abre-se uma brecha para a entrada do setor privado em um campo até agora considerado uma tarefa “típica de Estado”: o controle externo do setor público, de responsabilidade constitucional do Poder Legislativo e dos Tribunais de Contas.

Não se pode olvidar que cabe constitucional e exclusivamente aos Tribunais de Contas “apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio, que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento”. E é por demais consabido que, para a emissão desse relatório, as Casas de Controle realizam auditorias financeiras, operacionais e de conformidade em estreita observância às Normas Brasileiras de Auditoria do Setor Público (NBASP), aprovadas pelo Instituto Rui Barbosa (IRB), que são compatíveis com aquelas recomendadas internacionalmente.

Por oportuno, cumpre rememorar que o Art. 91, X da Constituição do Estado da Bahia de 1989 estabelecia que, entre outras, competia aos Tribunais de Contas do Estado e dos Municípios, “emitir parecer, para apreciação da Assembleia Legislativa ou Câmara Municipal, sobre empréstimos ou operações de crédito a serem realizadas pelo Estado ou Município, fiscalizando sua aplicação.” Por óbvio, esse dispositivo foi revogado pela Emenda à Constituição Estadual nº 07, de 18/01/1999, após ter sido concedida uma liminar na ADIn nº 461-1, que suspendia a eficácia desse inciso.

Certamente essa alteração, se for aprovada, terá a sua constitucionalidade questionada, já que há uma série de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que iguala as atividades de fiscalização ao poder de polícia, sendo, portanto, uma exclusividade estatal. No entanto, este entendimento não está nas tábuas de Moisés, é algo passível de modificações ao longo do tempo. E o papel do Estado na sociedade brasileira vem se modificando. Até os anos 1980, havia um consenso social e político de que os “setores estratégicos” da economia (infraestrutura, siderurgia, mineração, eletricidade e telecomunicações) deveriam ser estatais. Consenso que se desfez nos anos 1990.

O mesmo aconteceu com a exploração do petróleo e com os bancos públicos nos anos seguintes. E hoje se questiona se os Correios deveriam continuar estatais. Teoricamente, a educação pública pode ser substituída por vouchers, e a saúde pública por seguros privados. Por que o Tribunal de Contas seria uma instituição inalcançável?

Seguindo os princípios de separação de poderes e freios e contrapesos da Constituição de 1988 (até ela ultimamente tem sido bastante questionada), os Tribunais de Contas não devem entrar no mérito das decisões dos gestores: somente a sociedade, com o poder do voto, pode eleger ou derrotar uma plataforma eleitoral privatizante.

Isso significa que os Tribunais de Contas devem assistir a esse processo passivamente? De maneira alguma! É preciso agir! Mas como? Mostrando para a sociedade os prós e contras dessas desestatizações e os seus custos socioeconômicos de curto, médio e longo prazos, por meio de análises imparciais e de alta qualidade, com o rigor metodológico das normas de auditoria do setor público. Isso para que essa mesma sociedade possa escolher os seus caminhos com base em informações qualificadas e livres de interesses de mercado.

Nesse contexto, a inação poderá cobrar um preço caro dos Tribunais de Contas, mais dia ou menos dia, como nos ensinou Bertolt Bretch.

E se começamos este artigo com um poema, por que assim também não o terminar citando “No Caminho com Maiakóvski”, de Eduardo Alves da Costa?

“Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história.

[…]

Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.”

Inaldo da Paixão Santos Araújo* Mestre em Contabilidade. Conselheiro-corregedor do Tribunal de Contas do Estado da Bahia, professor da Universidade do Estado da Bahia, escritor.

Nelson Nei Granato Neto* Mestre em Desenvolvimento Econômico (UFPR), Analista de Controle do Tribunal de Contas do Estado do Paraná).

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