A nova lei de contratação direta de serviços de advocacia por inexigibilidade de licitação
Há aproximadamente quatro anos, publiquei neste espaço da Conjur artigo abordando a temática da contratação direta de serviços de advocacia pela Administração Pública[1]. Na oportunidade, discorri sobre requisitos essenciais a essas contratações, que costumam ser interpretadas com bastante “enviesamento” de parte a parte, alguns com o fim de eliminá-las e outros com o do “libera geral”.
Com fundamento na análise de acórdãos do STF, notadamente o Inquérito nº 3074-SC, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado pela Primeira Turma em 26/08/14, e o Inquérito nº 3.077/AL, rel. Ministro Dias Toffoli, julgado pelo Tribunal Pleno em 29/03/12), anotei as seguintes conclusões:
“a) É possível a contratação precedida de inexigibilidade de licitação, com base no artigo 25, II, atendidos os requisitos da lei. As interpretações extremadas que pretendem simplesmente aniquilar a possibilidade fática de contratação direta não se coadunam com as disposições da Lei de licitações;
- b) Esta hipótese de contratação direta tem cabimento mesmo quando haja uma pluralidade de especialistas aptos a prestarem os serviços à Administração, porquanto não se trata de hipótese de exclusividade. Desta forma, não cabe o argumento de que a existência de potenciais outros profissionais ou empresas aptos a prestarem o serviço impede a inexigibilidade de licitação;
- c) Uma vez presentes os requisitos da Lei nº 8.666/93, a decisão de contratar e a escolha do contratado – dentre os que cumprem os pressupostos, obviamente – inserem-se na esfera de discricionariedade própria da Administração Pública;
- d) A eventual existência de corpo jurídico próprio não obsta a possibilidade de contratação direta, cumpridos os requisitos legais. Se a existência do corpo jurídico fosse impeditivo, o artigo 13, incisos II, III e V da Lei 8.666/93 seria inconstitucional, porquanto admite expressamente a contratação de pareceres, consultoria, assessoramento e patrocínio de causas judiciais e administrativas. Além disso, é de rigor avaliar concretamente a aptidão profissional do corpo jurídico disponível para a Administração e a questão da confiança, ligada a aspectos discricionários, deve ser considerada para fins de licitude da decisão”.
O correr dos dias ao invés de refrear parece ter aguçado as controvérsias. Embora se verifique razoável consenso sobre a possibilidade de utilização da inexigibilidade de licitação para contratação de serviços específicos de advocacia – especificidade esta que deve ser aquilatada caso a caso – com prudência e sem paixões – ainda há registro de um sem número de feitos em tramitação no Poder Judiciário e nos Tribunais de Contas a discutir a regularidade das mencionadas contratações.
Nesse cenário normativo, veio à tona, após um digladiado processo legislativo[2], a Lei nº 14.039, de 17 de agosto de 2020, que inseriu no Estatuto da OAB (Lei 8.906/94)[3], o seguinte dispositivo:
“Artigo 3º-A. Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei.
Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.”
A nova disposição legislativa merece reflexão!
É muito pouco lógico concluir, como pretendem alguns, que a edição de uma lei nova, em tema de tamanha controvérsia, seja a representação de um “nada jurídico”, deixando as “coisas” no mesmo lugar. Diria Maximiliano, em conhecida lição, que “a lei não possui palavras inúteis” – verba cum effectu, sunt accipienda.[4]
Parece sensato compreender que o esforço do Poder Legislativo em disciplinar uma questão já posta no ordenamento, especialmente conhecendo-se a quantidade de lides a envolver a temática, teve obviamente o condão de prescrever novidades.
Esta novidade trazida pela Lei 14.039/20 não reside no aspecto subjetivo da contratação, ou seja, na conceituação do profissional ou empresa detentor de notória especialização, porquanto o parágrafo único do novo artigo 3-A da Lei 8.906/94 reproduz ipisis litteris a disposição do artigo 25, §1º da Lei nº 8.666/93[5].
A mudança proposta pelo legislador é pertinente ao aspecto objetivo da contratação, a estabelecer, na cabeça do artigo 3-A da Lei 8.906/94, que “os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei.”
Pelo teor do dispositivo, os serviços de advocacia (consultiva ou contenciosa), quando executados por profissionais notórios e especializados (a lei alude apenas a estes profissionais), são presumidamente singulares, porque assim se passa com as produções intelectuais “sempre que o trabalho a ser produzido se defina pela marca pessoal (ou coletiva), expressada em características científicas, técnicas ou artísticas importantes para o preenchimento da necessidade administrativa a ser suprida.” [6]
O que o legislador estabeleceu, como analisou com primazia o professor Luciano Ferraz, foi uma presunção em favor da singularidade do objeto da contratação, que terá lugar todas as vezes que os serviços advocatícios forem executados por profissionais detentores de notória especialização.
É importante ressaltar que a caracterização do serviço precede a busca do profissional mais apto para executá-lo. A partir das características de determinado serviço de advocacia surgirá a necessidade/possibilidade de contratação de advogado ou escritório com qualificações diferenciadas. Não se parte inicialmente da escolha do advogado para depois atribuir-lhe serviços – a legitimidade da busca por um notório especialista advém da necessidade de sua experiência, conceito, e formação para atender, de forma mais adequada possível, à plena satisfação do objeto do contrato. Essa afirmação não obsta a possibilidade contratações que necessitem de ajustes posteriores na delimitação do objeto, necessárias justamente em razão das atividades a serem desempenhadas pelo profissional (como serviços de consultoria ligados à busca de solução ou modelagem jurídica complexa, com fatores que vão sendo conhecidos e definidos ou apresentados ao contratado na medida da delimitação ou do surgimento da necessidade administrativa durante a execução).
A comprovação da notória especialização continua sendo um imperativo, e deve ser objeto de especial motivação pelos responsáveis pelo procedimento de contratação. A adoção de procedimento formalizado também continua obrigatória, com especial realce para a as razões da escolha do contratado e justificativa do preço (artigo25, parágrafo único da Lei nº 8.666/93).
Diante da nova presunção legal, entretanto, toda e qualquer pretensão de afirmar a inexistência da singularidade do objeto, uma vez presente a notória especialização do executor, atrairá um robustecido ônus de prova, a revelar a completa desproporcionalidade da contratação – um capricho, um desperdício, enfim, um non sense!
[1] https://www.conjur.com.br/2016-mai-19/interesse-publico-contratacao-servicos-advocacia-inexigibilidade-licitacao
[2] O presidente da República havia vetado o Projeto de Lei da Câmara (PL 10.980/18), com fundamento em inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público. O veto, entretanto, foi derrubado pelo Congresso Nacional.
[3] A lei inseriu disposição semelhante …. para versar sobre a contração de serviços de contabilidade. O fato de o legislador ter tratado de serviços de advocacia e contabilidade deixar ver que a direção de regência das disposições são especialmente os pequenos municípios que muitas vezes se fazem valer de tais serviços, mediante contratação de terceiros.
[4] Na expressão do jurista: “Não se presume a existência de expressões supérfluas; em regra, supõe-se que leis e contratos foram redigidos com atenção e esmero; de sorte que traduzam o objetivo dos seus autores. Todavia é possível, e não muito raro, suceder o contrário; e na dúvida entre a letra e o espírito, prevalece o último”. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 16. ed., Rio de Janeiro, 1997. p. 251).
[5] A redação dos dispositivos é a seguinte: “Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato”.
[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 19 ed., São Paulo: Malheiros, 2005. p. 508.