Edilberto Carlos Pontes Lima*
A pandemia do coronavírus é um forte teste para as federações e quase-federações, como a União Europeia. Trata-se de um momento de evidenciar as vantagens da grandeza, como defendia Alexis de Tocqueville. É também quando conflitos latentes ressurgem com força.
O federalismo constitui basicamente uma forma de Estado em que se repartem competências entre pelo menos dois entes, sem hierarquia entre eles. No modelo clássico, entre União e Estados-membros; no modelo brasileiro, com um terceiro ente federado, o Município, embora este participe com atribuições mais modestas e independência mitigada em relação aos outros dois (o decreto de calamidade do município, por exemplo, é aprovado pela Assembleia Legislativa, não pela Câmara de Vereadores).
Na distribuição de atribuições, responde a União pela chamada função estabilizadora, que é aquela responsável por estimular o crescimento econômico, evitar grandes recessões, crises bancárias e combater a inflação. Os demais entes federados exercem responsabilidades menores nesse campo, devendo apenas não serem fontes permanentes de instabilidade, ao evitarem apresentar déficits orçamentários muito grandes, por exemplo.
A pandemia do coronavírus trouxe dois desafios de grande dimensão. O primeiro e mais imediato tem sido enfrentar os problemas de saúde pública, o que exige pesados gastos com hospitais de campanha, montagem de UTIs extras, compra de respiradores, entre outros. Além disso, a necessidade de isolamento impactou fortemente a economia e, em consequência, as receitas públicas. Todos os entes federados sofrem esses efeitos. A União, como principal responsável pelo SUS, e os Estados e municípios, porque estão na linha de frente, administrando hospitais e postos de saúde.
Aqui é que surge a força da federação e em que se evidenciam os conflitos. É que os meios que os Estados-membros e os Municípios dispõem para enfrentar um problema dessa magnitude são claramente insuficientes. A capacidade de endividamento é muito limitada e não há autoridade monetária local, tornando obviamente impossível lidar adequadamente com as dificuldades.
O papel da União revela-se essencial. Sua capacidade de endividamento é muito ampla, quase ilimitada em certos casos, além de dispor de um banco central com poderosos instrumentos para oferecer ajuda e liquidez à economia. É a função estabilizadora em toda sua plenitude. Daí a importância das medidas anunciadas no Brasil: complementação das transferências dos fundos de participação dos Estados e Municípios,já em vigor, e do ICMS e ISS, aprovada pela Câmara dos Deputados e em discussão no Senado, entre muitas outras. A ajuda insuficiente e atrasada aos Estados e Municípios tende a levar esses entes ao colapso, com pesadas consequências sobre a sociedade e a economia.
A história registra desastres econômicos ocasionados por inações ou ações tímidas das autoridades responsáveis por respostas econômicas. No livro Lords of Finance, Liaquat Ahmed mostra como atitudes excessivamente conservadoras e ideológicas dos dirigentes dos principais bancos centrais do período, fundamentalistas do padrão-ouro, levaram as economias à Grande Depressão, que acabou sendo a matéria-prima do nazismo e da Segunda Guerra Mundial.
Na Europa, clama-se por ajuda ostensiva da União e aponta-se que o projeto de integração corre sério risco de se inviabilizar se o auxílio não chegar rápido e na magnitude adequada. Os movimentos isolacionistas aproveitam qualquer hesitação para acusar a falta de solidariedade e destacar as vantagens de moeda própria e de não submissão às regras europeias. Nos Estados Unidos, apesar dos conflitos do Presidente da República com os Governadores, principalmente sobre a definição acerca de quem define as políticas de lockdown, a União, principalmente por meio do Federal Reserve, vem trabalhando com energia.
Há experiências recentes muito bem-sucedidas. O enfrentamento da grande crise financeira de 2008 é o caso mais emblemático. Da atuação do Federal Reserve Bank, nos Estados Unidos, ao Banco Central Europeu, a União agiu fortemente para estabilizar a economia, não permitindo que a depressão se instalasse.
É assim que se anuncia o encaminhamento da atual crise, que terá impactos muito superiores às crises anteriores, embora os desdobramentos ainda sejam incertos. O conjunto de medidas anunciado tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa e no Brasil é substancial, mas não se sabe se será suficiente. É momento de o federalismo mostrar toda a sua força, atribuindo o cuidado imediato dos doentes aos governos estaduais e locais e para a União a coordenação da macropolítica de saúde, além das providências para que os recursos necessários cheguem de forma a não permitir que a economia colapse e que os grupos menos protegidos pereçam. Coordenação, diálogo intenso, cooperação, tudo isso integra o federalismo, afinal não há hierarquia. Embora seja trabalhoso e desgastante, é o melhor caminho.
*Doutor em Economia. Autor, entre outros, de Curso de Finanças Públicas, uma abordagem contemporânea (Editora Atlas). Vice-Presidente de Auditoria do Instituto Rui Barbosa (IRB) e Vice-Presidente do TCE-CE.